Referências

Entrevista de Morandi para A Voz da América, 25/4/57

Entrevistador- Penso que sua visão da pintura é clara, simples e serena. Como o
senhor chegou a ela?
Morandi- Para mim é muito difìcil dizê-lo. Creio que o temperamento, minha
natureza inclinada para a contemplação, tenham me levado a esses resultados. Não
poderia dizer mais; é muito difícil, para um artista, dar razões. Exprimir o que há na
natureza, isto é, no mundo visível, é o que mais me interessa.
Julgo que a tarefa educativa possível das artes plásticas é, particularmente no
presente, comunicar as imagens e os sentimentos que o mundo visível suscita em nós. O
que nós vemos penso ser criação, invenção do artista, caso ele tenha a capacidade de
fazer cair aqueles diafragmas, ou seja, aquelas imagens convencionais que se interpõem
entre ele e as coisas.
Dizia Galileu: o verdadeiro livro da filosofia, o livro da natureza, está escrito em
caracteres estranhos ao nosso alfabeto. Estes caracteres são: triângulos, quadrados,
círculos, esferas, pirâmides, cones e outras figuras geométricas. Sinto o pensamento
galileano vivo em minha antiga convicção de que os sentimentos e as imagens suscitadas
pelo mundo visível, que é mundo formal, são muito dificilmente exprimíveis, ou talvez
inexprimíveis com as palavras. Com efeito, são sentimentos que não têm nenhuma
relação, ou só têm uma muito indireta, com os afetos e com os interesses cotidianos, já
que são determinados justamente pelas formas, pelas cores, pelo espaço, pela luz.
Todavia, estou distante da pretensão de querer estabelecer normas para a obra do
artista e definir uma poética.
Ent.- O que o senhor acha da pintura abstrata?
Mor.- A pintura abstrata produziu obras importantes, se pensarmos, por exemplo,
para citar apenas um nome, em Paul Klee… no primeiro cubismo…Braque…Picasso…
Para mim não há nada abstrato; por outro lado, creio não haver nada mais surreal, nada
mais abstrato que o real.
Ent.- E o senhor já o provou nos seus trabalhos.
Mor.- Gosto do que o senhor me diz.
Ent.- E enfim, gostaria de perguntar: tem conselhos a dar aos jovens artistas de
amanhã?
Mor.- Não me sinto capaz de dar conselhos… Quando se tem uma certa idade…
Tenho confiança nos jovens… Para mim, seria faltar com o respeito para com as novas
gerações. O senhor tem a mesma opinião?
Ent.- Sim. Também tenho a mesma opinião.
Mor.- Vemos os erros que fizeram mesmo grandes artistas, ao julgar artistas
jovens.
A responsabilidade é deles, é das novas gerações, portanto eles terão de se virar.
Se tiverem um grande talento, eles tentarão abrir seu caminho e encontrar os meios para
realizar algo novo… Até mesmo uma nova arte.
Ent.- Esses são bons conselhos para nós! Muito obrigado, senhor Morandi.


NOTAS PARA MIM MESMO SOBRE COMO INICIAR UMA PINTURA.

(RICHARD DIEBENKORN)

1-TENTE O QUE NÃO FOR CERTEZA.A CERTEZA PODE OU NÃO SURGIR
MAIS TARDE.ELA PODE SER UMA VALIOSA ILUSÃO.

2-AQUELA AGRADÁVEL POSIÇÃO INICIAL,CHEIA DE INCOMPLETUDE,NÃO
DEVE SER VALORIZADA EXCETO COMO ESTIMULO PARA IR ADIANTE.

3-BUSQUE.PORÉM COM A FINALIDADE DE ENCONTRAR ALGO OUTRO DO
QUE ESTA SENDO BUSCADO.

4-UTILIZE E RESPONDA AS QUALIDADES DO FRESCOR
INICIAL,PORÉM,CONSIDERE ABSOLUTAMENTE CONSUMIVEIS.

5-NÃO DESCUBRA UM ASSUNTO (SUBJECT) QUALQUER QUE SEJA.

6-DE MODO ALGUM,NÃO SE ABORREÇA,MAS SE FOR NECESSÁRIO,USE
O ABORRECIMENTO NA AÇÃO. USE O SEU(DO ABORRECIMENTO) PODER
DESTRUTIVO.

7-ERROS NÃO PODEM SER APAGADOS,PORÉM,ELES O FAZEM MOVER
DA SUA POSIÇÃO ATUAL.

8-PENSE EM POLYANNA.

9-TOLERE O CAOS.

10-SEJA CUIDADOSO SÓMENTE DE UM MODO PERVERSO.


A complicada arte de ver

Rubem Alves

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: “Acho que estou ficando louca”. Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. “Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões – é uma alegria!
Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica.
De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões… Agora, tudo o que vejo me causa espanto.”
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as “Odes Elementales”, de Pablo Neruda. Procurei a “Ode à Cebola” e lhe disse: “Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: ‘Rosa de água com escamas de cristal’. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta… Os poetas ensinam a ver”.
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.
William Blake sabia disso e afirmou: “A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê”. Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado.
Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Adélia Prado disse: “Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra”.
Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem.
“Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios”, escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido.
Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada “satori”, a abertura do “terceiro olho”. Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: “Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram”.
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, “seus olhos se abriram”.
Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em “Operário em Construção”: “De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa – garrafa, prato, facão – era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção”.
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas – e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre.
Os olhos não gozam… Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras.
Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: “A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas”.
Por isso – porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver – eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar “olhos vagabundos”…
Rubem Alves – Educador e escritor.

Texto originalmente publicado no caderno “Sinapse”, jornal “Folha de S. Paulo”, em 26/10/2004.

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